20 janeiro, 2018

Encontro com um Avatar


   Anne vai subindo e entrando por entre as montanhas. Olha para as escarpas ao redor e sente receio. Isso gera um sentimento cada vez maior de insegurança e ela começa a sentir-se cansada. 

   Por entre as sombras da montanha algo se movimenta, à princípio furtivamente, porém, em seguida avança em sua direção na forma de seres nebulosos e monstruosos. Anne entra em pânico e, aproveitando-se do momento, um dos seres empunhando um estranho arco e flecha, dispara um seta veloz que atinge,  como um ferrão, o ombro direito da menina. Anne berra de dor e curva-se sobre o chão rochoso. Outros seres aproximam-se sedentos. Subitamente, uma luz irrompe em meio às sombras e os seres afastam-se, mas sem deixar o local. Observam visivelmente incomodados pela luz, enquanto soltam impropérios. No centro da luz surge uma forma translúcida, uma forma de uma grande árvore, no centro da qual começa a surgir um vulto que vai lentamente tomando a forma de um ser humano sentado na posição de lótus. O ser levanta-se calmamente e vem caminhando. 

   Anne observa o ser, porém além da dor insuportável, começa a sentir-se tremendamente fraca, dominada por confusão mental que a impede de raciocinar claramente. Em seu rosto, diversas artérias enegrecidas espalham-se cada vez mais numerosas, indo em direção a seus olhos partindo do ferimento, onde a flecha permanece cravada.

   O ser aproxima-se mais e revela-se um belo e jovem homem vestido com um suave manto dourado e os longos cabelos arranjados e presos no alto da cabeça. Sua fisionomia indochinesa é de uma serenidade profundamente reconfortante. Apesar de sua aura envolvente, ela não consegue mais discernir as coisas. O homem abaixa-se lentamente próximo de Anne, tocando com sua destra a flecha enegrecida. No mesmo instante, a seta se desfaz no ar em milhares de partículas, que vão se incendiando e desaparecendo, até nada mais restar. O horrendo e enegrecido ferimento do ombro de Anne permanece pulsante como uma criatura viva que vai alastrando-se por todo o corpo da menina. O homem toca o centro do ferimento e uma luz arroxeada cintila ao toque, tomando a forma de uma flor de lótus que, girando suavemente, vai esvanecendo até desaparecer. Em seu lugar, o ombro da menina está curado, como se nada o tivesse magoado antes. As artérias enegrecidas que cobrem o rosto de Anne começam a dissipar-se e um líquido viscoso, que parece ter vida, começa a sair por seus ouvidos, atirando-se no solo rochoso e desaparecendo entre os fragmentos de rocha, buscando esconderijo nas profundezas sombrias. 
   Anne sente-se exausta, mas o homem a ampara colocando a mão em seu ombro e olhando em seus olhos. Anne retribui o olhar.

- Maya.

   Anne escuta, sem entender a palavra que sai suavemente dos lábios quase imóveis do homem. Maya? Meu nome é Anne, pensa.

- Maya é a ilusão. Se sua mente é impura, sua terra será impura. Se sua mente é pura, sua terra será pura. O desejo é como um rei impiedoso, que nunca está satisfeito e que impera em seu coração. Não deseje e não sofra. O desejo é a alma do sofrer. Mantenha-se firme em seu propósito, porém flexível como árvores ao vento. Sua determinação é admirável, mas sua rigidez a enfraquece diante do vento dos acontecimentos. E isso te torna presa fácil do mundo de Maya.

   Anne escuta e tenta entender. Com certeza aquele era mais um ensinamento valioso como tantos outros que vinha recebendo, mas como seria possível pôr em prática aquilo? Como viver sem desejar algo? Como ser firme e flexível? Não parecia fazer sentido algum.

- Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele. Tudo o mais são ilusões para desviá-la de seu caminho. São obras de Maya. Tudo o que é passageiro é uma ilusão que nos vem incomodar. Seu coração está mergulhado na impureza, pois há ódio escondido nele e que você mesma desconhece. O ódio é como uma pedra quente que temos a intenção de atirar em alguém. Porém, é sempre aquele que levanta a pedra quem se queima primeiro. Há muitas queimaduras do passado, mas elas são exatamente isso, apenas passado. Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos fazemos o mundo.  Tudo tem seu tempo no não-tempo. Observe. Apenas observe e siga em frente.
- Mas como...?
- A paz só pode ser encontrada dentro de você mesma. Não adianta procurá-la incansavelmente à sua volta, pois estará fadada ao fracasso. – Ele sorri amorosamente. – Só há um tempo em que é fundamental despertar. Esse tempo é agora. 

   Dizendo isso, ele toca a testa de Anne suavemente com a ponta de seu indicador e um brilho intenso espoca na consciência de Anne, iluminando tudo. 
    Ela não ouve nada, não vê nada, além de luz. Luz por todos os lados. Permanece assim por algum tempo, sem saber precisar o quanto, pois não há tempo nem espaço. Seu ser amplia-se tocando em tudo, mesclando-se a tudo sem deixar de ser ela mesma. Está imersa em profunda paz. Todo o universo passa a fazer sentido. Tudo é muito simples. Tão simples como as pessoas jamais imaginaram ser possível. Anne percebe o quanto as pessoas dificultam tudo tornando complexo e difícil o mundo, o universo, a vida. Todas as coisas são passageiras, ela sabe. E não está separada de nada. O universo é um só, onde Deus, deuses, seres e mais seres são partes de uma só coisa, uma só imensidão de paz e luz.
   De repente, ela abre os olhos e está novamente na silenciosa sala. Em sua frente, Helena sorri com os olhos marejados de lágrimas. Anne não compreende bem a situação. 

- Minha querida. Não tens a menor idéia de quem esteve contigo, não é?

   Anne faz que não entende.

- Só tive esta oportunidade muitos anos depois de iniciar meus estudos com os mestres do oriente. Você, em tão poucos meses, já recebeu a visita de um grande mestre.
- Mestre? O homem bom de manto dourado, que disse coisas profundas?
- Sim. Não sabes quem era ele? Nem imaginas?

   Anne, despreocupadamente, porém interessada, faz que não com a cabeça.

- Oh, querida! Já vens estudando algumas coisas sobre o budismo. Estiveste com Sidarta Gautama, um dos Budas. Poucos um dia conseguiram estar com ele em suas meditações. Estamos praticando há apenas alguns meses e você já teve a oportunidade de encontrá-lo no mundo espiritual. Acabaste de receber um grande presente.

   Anne tenta entender a dimensão do que Helena estava dizendo, da importância de tal encontro, mas era muito difícil para alguém que soubera da existência de Buda apenas por breves citações em alguns livros da estante da sala de tia Rita e das imagens gordinhas e sentadinhas de pernas cruzadas e que nada pareciam com o homem que ela acabara de conhecer. Fora isso, não tinha mais qualquer referência sobre o Buda.

- Anne, sei que ele te passou alguns ensinamentos.
- Sim.
- Pois medite sobre eles. No momento, podem parecer difíceis e, até mesmo, sem sentido mas, com o tempo e a meditação continuada, você começará a acessar egrégoras de forma pensamento mais elevadas e tudo começará a clarear. Tenha paciência e aplique-se com esmero aos estudos. Disciplina é a base de tudo. A partir de agora, além das poucas citações a que teve acesso dentro dos ensinamentos budistas, você acrescentará a teus estudos, a filosofia budista em sua essência primordial e sem os desvirtuamentos tão comuns às tantas vertentes que se seguiram com o passar das dezenas de séculos. Somente aqui em Shambala é possível tomar contato com a pureza dos ensinamentos de Sidarta.
- Sim, D. Helena. Eu vou me esforçar cada vez mais. E sempre me interessei por tudo que tenho aprendido. Tenho certeza de que vou gostar muito de aprender sobre o budismo.
- Por favor, querida, desde que chegou aqui, que quero te dizer isso: chame-me apenas de Helena. - Diz, abrindo um grande e terno sorriso.

   Anne sorri e faz que sim com a cabeça. No peito ainda sentia a sensação de paz daquele lugar para onde Sidarta a enviara. Mas será que ele a enviara mesmo para algum lugar? – Pensava. Talvez, segundo o que ele disse sobre a paz estar dentro de nós mesmos, ele só tivesse mostrado algo que estava dentro dela mesma, sem que ela nunca tivesse se dado conta disso. Enquanto pensava sobre isso, deu-se conta de que algo estava diferente. Resolveu calar o raciocínio e apenas sentir. Fechou os olhos e deixou a respiração tranquila. Em poucos instantes, abriu um sorriso. Meu Deus! – Pensou. Nada! Não há nada! – Disse para si mesma. Sim. Sua mente estava quieta. Não havia mais pensamentos pulando feito macaquinhos de um lado para o outro, impedindo-a de concentrar-se. Tudo estava silencioso em sua mente, quando ela calava o raciocínio ordinário. Agora, sim. Ela tinha certeza de que as coisas começariam a dar certo.
   Helena levantou-se sorrindo, entendendo os pensamentos animados de Anne e orgulhosa do progresso rápido de sua pupila. 

- Observe. Mesmo quando chegas à conclusão de que há o vazio, acabaste de preenche-lo com a o raciocínio desta certeza. – Helena piscou um dos olhos, enquanto sorria. Anne também sorriu, entendendo perfeitamente as artimanhas de sua própria mente. O Nirvana não seria atingido tão facilmente, soube.

  Anne seguiu sua mestra e Helena a convidou para um passeio pela cidade. As duas cruzaram os imensos umbrais dourados da sala, fechando a porta atrás de si.

Trecho de 'Anne Blind entre Luz & Trevas'
Em breve nas melhores livrarias.

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