18 setembro, 2023

Os Morcegos

   Ele estava lá, imóvel; apenas observava o revoar dos morcegos, que cortavam velozes o ar ao seu redor. Era uma imagem curiosa de se observar, ele parado ali e todos aqueles morcegos indo e vindo, frenéticos, sorvendo o que restara nos bebedouros dos beija-flores.

   O que passava por sua mente naquele instante era difícil de se saber. Ele jamais fora um homem previsível; encontrá-lo ali, em meio ao voo dos morcegos era ótimo exemplo de sua imprevisibilidade.

   Até que, em determinado momento, balançou o corpo, deu meia-volta e retornou para dentro de casa, sem nada dizer e fechando a porta atrás de si.

   Depois desse dia percebia-se a repetição do mesmo costume, vez ou outra, mas sempre da mesma forma, sem dizer palavra; apenas à observar o voo dos morcegos.

   Alguns anos depois, soube-se que ele falecera de forma natural, levando consigo a razão de porque desenvolvera esse costume de observar os morcegos. Talvez gostasse das criaturinhas noturnas. Mas a verdade é que o real motivo para todo o sempre será um mistério.

15 maio, 2023

Memórias de Cotswolds

Eu costumava olhar a sutil névoa que cobria as manhãs de Cotswolds, quando visitava minha avó durante as férias. Nunca tivemos isso no Brasil, ainda menos no Rio de Janeiro. Aqueles momentos matutinos em terras inglesas me faziam sentir como um personagem mitológico de um livro de aventuras que Tolkien nunca escrevera, ou que escrevera, mas estava escondido, perdido por dezenas de anos, sem que ninguém suspeitasse de sua existência; e esse pensamento me fazia sentir como pertencente à uma história esclusiva e que ninguém lera ainda.

Eu devia ter por volta de nove ou dez anos, mas já tinha essa mente fértil ou dada a viagens mirabolantes, como um prelúdio de que me tornaria escritor ou qualquer outra coisa que necessitasse de uma mente criativa e sem amarras, que nunca tivera medo de criar e viver seus mundos, embora os reservasse ao particular, com receio da dureza das outras pessoas. Minha avó alimentava isso. Como boa descendente de irlandeses, a mitologia e a magia daquelas terras fluiam pelo seu sangue, transbordavam por seus movimentos e insinuavam-se através de seu olhar sempre vivaz e cheio de mistérios, que tanto me fascinavam e confortavam, quando eu desejava ser apenas eu mesmo, sem as pseudo regras de uma sociedade cada vez mais atolada na brutalidade de um mundo fabricado por medos e dominância.

Eu andava por aquelas ruas e caminhos quase naturais, encontrava trilhas diferentes e, embora fosse uma cidade, sempre fora uma cidade repleta recantos interessantes, se é que essa seria a melhor forma de classificá-los, quando 'recantos' parece tão simplista e tão inapropriadamente insuficiente. Toda a arquitetura de Cotswolds tinha algo que me remetiam aos livros, um toque especial de algo sutil, segredos furtivos de lugares e momentos atemporais, como portais para outras dimensões e mundos insuspeitados. E eu fantasiava com fadas escondidas em moitas, que me observavam curiosas; fantasiava com passagens secretas de gnomos disfarçadas embaixo de pedras musguentas ou em pequenos e obscuros vão nos velhos carvalhos.

Eu passava minhas férias de inverno nesse lugar mágico, do qual me lembro sempre com muito carinho e um impossível desejar de que um dia retorne; mas será que ele não tem exatamente o poder de retornar sempre que relembro alguns desses momentos de minha infância distante?

Hoje sou um escritor brasileiro, porque, afinal, brasileiro sou, porém há em minhas veias o velho sangue, com toda sua herança mitológica; minha alma permanece repleta das brumas e sonhos saturados de magia antiga, que inevitavelmente verto em minha escrita, em minhas histórias, que nem sempre são previsivelmente compreendidas, e permanecem nas entrelinhas, aguardando a personalidade certa, o insólito leitor, a formidável alma capaz de decifrá-las, abrindo antigos portais e trazendo de volta a magia perdida deste mundo tão quase completamente industrial.


12 setembro, 2022

E Continuam Caçando Bruxas... (Sobre Ser/Agir Diferente)

 

Fotografia de Rui Veiga
Às vezes, apesar de minha tranquilidade (aparente), tenho vontade de transgredir e revolucionar tudo, fazendo algo totalmente inesperado e que muita gente acreditaria que seria praticamente impossível que eu fizesse. Às vezes realmente faço e as pessoas se dividem comicamente em dois grupos, os assustados e os críticos. De um momento a outro, uns passam do primeiro grupo para o outro; bem previsível, após passar o susto provocado pela surpresa do inesperado. As palavras se levantam no ar como impiedosas flechas ou permanecem as carrancas estampadas, como a quererem espantar os maus espíritos, exatamente como suas similares nas portas das casas nos costumes antigos de algumas regiões do Brasil. 

Mas, apesar de toda a comoção, se é que posso usar este termo, a bem da verdade, não imagino porque eu teria que corresponder às expectativas dos outros, coisa que só diz respeito a cada um que se atreve  a usar deste artifício pouco útil. Como diz o velho adágio popular, o que eu faço da minha vida, só diz respeito a mim e NÃO DEVERIA dizer respeito a ninguém; porém, vivemos numa sociedade onde as pessoas foram acostumadas a reagirem como se a vida alheia lhes dissesse respeito e, alguns, sentem-se profundamente ofendidos, se alguém resolve pensar ou agir diametralmente diferente do que eles (ou a sociedade) estabelecem como padrão, ou seja, o supostamente certo.

Não foram raras as vezes em que me vi numa posição curiosamente hostil e me senti até envergonhado, para depois, aos poucos, começar a perceber que a opinião dos outros pouco ou nada tinha de importância em relação às minhas escolhas e na forma em que eu decidia viver. Desde que eu não estivesse de fato prejudicando ninguém, qualquer argumento em contrário não passa de falácia e intrometimento de alguém (ou alguéns) que se acha no direito de ser o juiz que vai pautar o que é certo ou errado na vida de quem vive dentro desta sociedade.

No passado, nas gerações anteriores à minha, a coisa era ainda pior e as pessoas que ousassem "escandalizar" a suposta moral vigente, era inevitavelmente colocada à margem da sociedade e tornava-se difícil mesmo conseguir viver, pois todas as facilidades (que já eram poucas) lhes eram tiradas, pois ela se tornara pessoa "marginal". Alguma semelhança à infame e desumana cultura do cancelamento de nossos dias? Pois é. Não só diz-se que as gerações atuais tem o costume de ressuscitar os costumes de das duas décadas (ou mais) anteriores, como isso já foi provado por estudos comportamentais realizados e dezenas de matérias a respeito publicadas; o problema é que nem sempre são ressuscitados bons costumes, mas também antigos vícios, alguns bem execráveis e inadmissíveis ao progresso humano em direção a um ideal humanitário e fraternal, onde busca-se atingir um mundo melhor, com relações saudáveis tanto para conosco, humanos, quanto para com os demais seres com os quais dividimos a vida neste planetinha azul.

Mas onde estaria a falha? Seria um erro de avaliação e bom censo? Mas isso não estaria ligado ao próprio interesse individual humano em buscar realmente se melhorar e eliminar de si os próprio equívocos inerentes e interferentes em seus, não só julgamentos, mas comportamento e pensamentos?

Na Bíblia se fala de "pecados", mas tirando toda sorte de religionisses, que só trouxeram mais problemas para a epopeia humana, do que benefícios, provavelmente sempre nos tenhamos equivocado em saber o verdadeiro sentido e dimensão que se buscou atingir com a escolha desta palavra. Ao invés de pensarmos de forma tão rasa, deveríamos atentar que, talvez, se buscasse dizer, pura e simplesmente, que devemos eliminar de nós o péssimo costume de querer estabelecer padrões muito particulares e baseados em critérios provavelmente muito duvidosos para pautar a vida do semelhante, posto que este, a meu ver, tem sido o maior mal do ser humano. Em toda a história, não fizemos mais do que condenar o outro pelo que supostamente deveria ser o certo e, muitas vezes, distorcendo os fatos ou omitindo-os, vaticinamos que este suposto mal deva ser eliminado da face da terra, custe o que custar, quase sempre cometendo as maiores atrocidades em escala global, em um processo de guerras consecutivas e sem fim. E pensar que isso começa com um supostamente inocente julgamento em relação à decisão de outra pessoa, que escolhe mudar e fazer algo diferente de/em sua vida.

Talvez, o problema do ser humano não seja o ego, mas o egocentrismo, a egolatria, o egoísmo. Mudar o foco para uma possibilidade mais coletiva e em expansão constante pode ser o único caminho da "salvação" de uma sociedade aos trancos e barrancos faz tempo e que muitos consideram em claro declínio e cujo destino pode ser derradeiro, caso não consigamos virar esta chave tão necessária.

Tudo isso é um bom ponto, creio eu, para ser não só refletido e paralisado na reflexão, mas que trazido para o dia à dia os seus bons resultados; e que resolvamos também mudar nosso modus operandi, para uma vida de relacionamentos mais respeitosos e, obviamente, mais saudáveis. 

Mudar, finalmente, pode ser a melhor escolha, em vez de julgar.

24 agosto, 2022

Nossos Caminhos Estranhos

A gente caminha, muitas vezes, por caminhos estranhos, cujos destinos não se tornam muito claros até que estejam debaixo de nosso nariz. E nem sempre estes caminhos levam a conclusões muito agradáveis. Talvez seja mais honesto dizer que quase nunca. 

Nossos sonhos são os motivadores de nossos passos inseguros e incertos, mas quantas vezes nos conduziram a algum tipo de felicidade? Evitamos a sinceridade dessa resposta, porque morremos de medo de perder a fé em nossos sonhos. É, somos covardes contumazes e nos alimentamos dessa pseudo-ignorância, uma auto obnubilação conveniente, para que não tenhamos que lidar diretamente com a realidade, que nos parece tão cruel e verdadeiramente impiedosa. Talvez o seja, mas é aos olhos da sociedade; a realidade em si é inexpugnável, indecifrável e inalcançável; somente podemos possui-la através de seus fragmentos e pontos de vista limitados. Somos insuficientes, incapazes, sensorialmente limitados. Ainda assim, fazemos bravatas como donos da verdade em muitas ocasiões; fanfarronice descabida de egocêntricos babacas.

Caminhamos embevecidos por entre os avanços tecnológicos, como se isso representasse nossa própria evolução humana, que, na verdade, pouco aconteceu; somos bárbaros hightech espreitando a primeira cutucada, para levantarmos mais uma vez nossas clavas e explodir os crânios de nossos desafetos, seja de forma metafórica ou mesmo literal. Pouco nos conhecemos, pouco nos controlamos, pouco humanizados. Os instintos ainda nos arrastam e tudo pelo qual lutamos tem como pano de fundo o poder, o prazer e o sexo. Absolutamente tudo. Seja evidentemente, seja disfarçadamente, com mil e um disfarces sociais, porque afinal, há de se garantir a máscara; a máscara é tudo. Ela é tão importante para nossa miserável existência, que avolumamos dezenas e dezenas delas, cujas trocas frequentes acontecem a todo instante, dia após dia, de acordo com a conveniência, de forma a mantermos nosso teatro grotesco de falsas verdades, verdadeiras mentiras travestidas e oportunas.

E nossos caminhos estranhos se prolongam tanto quanto se prolonga nossa falsidade e continuamos na desfaçatez do risco do cego que não quer ver, até que a própria vida nos dobre dolorosamente, de um jeito insuportável e inescapável.

16 maio, 2022

A Arte e a Barbárie nestes Brasis

 Ser ator no Brasil ainda significa estar disposto a lidar com uma quantidade enorme de consequências da falta de uma educação avançada e uma valorização real da cultura, que infelizmente mantém a maioria popular num limbo de preconceitos, conhecimento raso e, obviamente, falta de respeito, enquanto vítima da armadilha da mitificação da profissão. Haveria como ser diferente? A resposta é óbvia: claro que sim. No entanto, a estrutura social brasileira é tão frágil e calcada ainda num jogo desumano de capataz e serviçal, um bom figurino para disfarçar a mesma relação senhor de engenho e escravo de tempos idos (?), que se torna impossível esperar que a maior parte da população consiga de fato avaliar corretamente a importância da Arte e de outras profissões, não necessariamente da área artística, muito embora a Arte esteja em praticamente tudo em nossas vidas.

O que esperar do futuro do eterno país do futuro, que mais parece sem futuro, diante da falta de uma valorização real das aptidões das pessoas em seu processos individuais de educação, quando a própria educação, cujo princípio e proposta é até boa, mas foi sucateada pela corrupção tão vil que assola o Brasil desde sempre, não está voltada para o indivíduo e suas aptidões particulares?

É preciso que se humanize a educação, senão a maior parte de nós continuará no fundo deste abismo sombrio, olhando para cima, para os poucos bem-educados e cultos, uns se considerando quase deuses e outros presos ao complexo das impossibilidades; tudo isso parte de um espetáculo torpe, que mimetiza a real condição em que todos inebriadamente se encontram, num país eternamente de farrapos educacionais, institucionais, culturais e sociais, que vive o carnaval de que tudo está bem e - pior! - que se é o suprassumo da raça humana, muito embora se busque valorizar tudo que venha de fora, menos o que realmente vale a pena de ser copiado.

O Brasil é refém de si mesmo, de suas próprias armadilhas orgânicas, onde se deita em berço esplêndido, não necessariamente confortável, mas eternamente atado à preguiça de se fazer diferente, de se reformar, consertando seus defeitos, sempre calcado no indesviável humanismo e valorizando de verdade as tantas qualidades reais e preciosidades naturais que tem. 

Agora, essas e quaisquer outras mudanças na estrutura social só vão acontecer, quando cada indivíduo se responsabilizar e se dedicar em promover esta mudança em si e em seus próprios conceitos, padrões e paradigmas. A estrutura não muda, se a base - os indivíduos que a compõem - não mudar antes. Não existe milagre e nada vai mudar, se as pessoas que compõem a sociedade permanecerem escravas de (pre)conceitos e paradigmas inúteis, que não promovem um avanço em direção à empatia e a busca de uma vida melhor para todos.

E qual a importância do ator, assim como da própria Arte em si mesma, nesse processo? Ela é a "entidade", a vertente criativa, que nos mostra outros pontos de vista, que nos oferece a possibilidade de expandir nossas percepções, de entender melhor o quadro geral. A Arte nos convida a ir além de nosso diminuto e insuficiente ponto de vista diante da realidade, realidade essa, cuja abrangência é sempre maior do que podemos imaginar. Ir além de nossas próprias e costumeiras concepções, nos permitir entender essa crescente abrangência dentro de nossa capacidade também crescente de percepção, é a chave para continuarmos a crescer, a evoluir nesse processo o qual denominamos Vida.

Uma noite dessas...

 E a noite adentra em si mesma, nos rebocando à revelia, através de seu leito de suspensão da razão; um descanso das elucubrações e preocupações adereçadas de nossas inúmeras mesquinharias, bem naturais à nossa personalidade egocêntrica.

Do Desânimo do Escritor

 Eu estava me sentindo desanimado para escrever, quando percebi que essa sensação, essa predisposição, tem sido promovido pelo meio editorial brasileiro. É triste como a coisa funciona de forma absurda e como uma rua sem saída - não aceitam receber seu manuscrito e mandam você arrumar um agente literário, que por sua parte, não quer te agenciar, porque você não é um escritor renomado, então nem se dá ao trabalho de ler o material para ver se é bom e merece ser defendido; ou mercado que te absorve de forma supostamente benevolente, com o tempo revela-se de forma friamente desonesta. Daí, resolvi que não deixaria essa latrina toda influenciar na minha pena ou minha vontade de trabalhar as letras e minhas histórias. Minha escrita é mais do que arte; é clara resistência. Mas, então, Arte, entre outras coisas, não é óbvia resistência a aceitar apenas a realidade insensível e formatada (muitas vezes desumana e violenta!)? Então, não estou fazendo nada do que já não fazia, apenas que com mais consciência, determinação e autenticidade.